quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014



Há sempre aquelas pessoas que nos apetece meter no bolso e levar para casa. E depois há aquelas que nos fazem querer agarrar na máquina fotográfica e disparar trinta vezes. Esta pessoa fez-me querer disparar trinta e uma.

Como as fotografias limitam, em tudo, a capacidade de imaginação, propondo-nos uma imagem imediata daquilo que deveríamos visualizar e não um contexto aliado a um texto de passível interpretação única e exclusiva a cada um de nós, não lhe tirei sequer a fotografia em saldo.

Sejamos tal e qual imagistas medievais e façamos a fotografia na nossa cabeça. Claro que a vossa visualização será mediada pelas minhas palavras. Ainda assim, será mais pura do que o acto de vos escarrapachar fotografias. E esta pureza afirma-se pelo facto de, ainda que mediada por mim, ela é vossa. Só vossa.

Era uma rapariga da minha geração, talvez um pouco mais nova do que eu. Entrou no metro no Campo Grande, linha amarela, sentido Marquês de Pombal, para sair na estação a seguir, assim como centenas de pessoas, ou milhares, o fazem todos os dias. Uma rapariga normal que se destacou exactamente por causa disso. A sua simplicidade potenciada por uma calma e serenidade gigantes, bem maiores do que a sua pouca altura.

O meu olhar prendeu-se de imediato. Senti-me um vector parasita que circunda em voos meio toscos a sua presa para lhe sugar um pouco de sangue, um pouco de alimento. Olhar quem me rodeia faz parte da minha dieta. Nos dias em que não encontro quem me desperte este tipo de emoções é quase como se estivesse a jejuar, em plena época de Quaresma, coisa que se espera do mais fiel Cristão. Contudo, Cristã é coisa que não sou. Preocupo-me apenas em alimentar o meu espírito, dar alento à minha alma, dar-lhe algo com que se entreter, divertir, imaginar, ser feliz. E é tudo isto que perco, aquando os meus raros e aborrecidos jejuns.

Neste dia bebi, comi demasiado, enchi os olhos, saciei o estômago da fome constante de encontrar quem me faça, apenas e pura e simplesmente, sentir. O sentimento passa por nada mais, nada menos do que a vontade agonizante, praticamente louca, de começar a inventar uma história, a descrever teorias na cabeça e a conceptualizá-las no papel. A rapariga do blusão castanho-esverdeado comprido, com as suas botas encarnadas meio apalhaçadas e o seu cabelo negro apanhado num rabo de cavalo, meteu-me os sentimentos à flor da pele.

Não a conhecia. Não a conheço. Nunca a conheci. Jamais a irei conhecer. Apesar dos advérbios irem de acordo com a negação de todas as probabilidades, na minha cabeça tudo soava afirmativo. Foi lá que nos encontrámos, foi lá que conversámos, foi dentro dela que acabei por a conhecer, sem sequer trocar uma palavra. E, negando novamente o que parece ser possível, nem nunca ela irá saber que a conheci desta forma, que pensei nela, que inventei um mundo para ela, que a imaginei imensamente e, injustificavelmente, feliz.

Tamanhos olhos negros e rasgados acentuavam um rosto demasiado redondo. Arriscar-me-ia a dizer que se tratava de um círculo perfeito, mas a perfeição retira a graça ilógica àquilo que as coisas naturalmente assumem ter. Por nem uma única vez os levantou do chão, fitando apenas os pés calçados com as tais botas que lhe davam imenso carisma. O nariz, esse demasiado pequeno, emoldurado por duas maçãs de rosto salientes e rosadas, ia inspirando lentamente o ar poluído pelo ar expelido por pessoas mais altas, mas menores, do que ela.

Reparei que ia a ouvir música. Perguntei-me qual seria. Poderia ter ido direita à rapariga em questão e ter enunciado tal interrogação que me passava pelo pensamento. Mas, como disse, a conversa que tivemos foi monológica. Imaginei que pudesse ser um indie rock britânico, bem antigo, daqueles dos inícios dos anos 80.

Quem és tu? Quem foste tu há um segundo atrás? Quem irás ser tu após passar mais um segundo? Como soaria a tua voz? Doce. A resposta a todas estas perguntas resumia-se a um adjectivo uniforme, que na gramática Brasileira se classifica como um adjectivo comum de dois. Comum tal como o sítio onde que nos cruzámos. De dois por sermos duas de mim: eu real e tu imaginada no meu pensamento, mas não tu. Um reflexo de como me vejo em ti. Um espelho que me lembra aquilo que quero ver ou que procuro, inconscientemente, dentro do meu ser.

Chegou a tua paragem. Inclinaste-te diante da porta, esperando o aviso para poderes sair. Foste, levaste a tua energia contigo. E em cinco minutos que durou o teu percurso, o teu salto entre estações, fizeste-me feliz. Espero que também o sejas, pois dentro da minha cabeça, tinhas tudo para o ser.

Marta F. Cardoso

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2 Comentários:

  1. Texto genial. A forma como traduzes os teus sentimentos para a escrita de uma forma tão clara mas ao mesmo tempo super cativante deixa qualquer pessoa colada ao ecrã :)

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